Dança do ventre e inconsciente coletivo

Quando falamos em dança do ventre, logo nos vem à mente a mulher sensual, envolta em véus, cheia de força, mistério e beleza. Essas sensações nos são evocadas pelo arquétipo da deusa do amor, venerada por antigas civilizações. São registros importantes do nosso inconsciente coletivo mas que, ao longo da História, quase foram esquecidos por séculos de domínio da cultura patriarcal.
Uma chave de poderosa reconexão com a força viva deste arquétipo está na dança do ventre. Através dela, a bailarina liberta sua Deusa, ativa o feminino sagrado e, assim, consegue ver o mundo e si mesma sob uma ótica diferente: de plenitude. Mas, entre lá e cá, há muita neblina cultural, e para avivar noções importantes sobre o Feminino Essencial, Andrea Castro - psicóloga, bailarina e professora de dança do ventre - nos traz aqui um cuidadoso retrato sobre a formação do inconsciente coletivo em relação à dança. Ela nos fala sobre populares deusas femininas, sobre uma época em que a sexualidade da mulher era objeto de adoração religiosa, e também a respeito de como estes valores sucumbiram ao poder do machismo.
E, de quebra, Andrea nos conta o que percebe em suas alunas hoje. Muito interessante tudo isso!


Sim, eu sou a primeira e a última.
Sou a honrada e
a desdenhada.
Sou
a meretriz e a sagrada.
Sou a esposa e a virgem.

Sou a mãe e a filha.

Sou os membros de minha mãe...

Sou o silêncio incompreensível

e a idéia cuja lembrança é frequente.

Sou a voz cujo som reverbera

e a palavra que se repete.

Sou a expressão vocal de meu nome.


("The Thunder, Perfect Mind" - Nag Hammadi Library, 1981)




A história da humanidade conta que, desde épocas mais remotas, o homem dança. Povos primitivos faziam uso dela como celebração, além de divertimento e socialização. Segundo Buonaventura (1998), "toda dança vem da vida, e em particular da nossa necessidade de nos expressarmos e fazermos sentido de nossa existência. Por sua natureza, é o meio mais poderoso de auto-embriaguês que temos, desenvolvendo energia no corpo e então liberando-a. Seu raison d´être é refletido nas origens de nossa palavra para ela, que tem uma derivação similar em línguas por todo o mundo. 'Dança' vem do Sânscrito tanha, que significa 'alegria da vida', enquanto a árabe 'raqs' e a turca 'rakkase' derivam assírio rakadu, que significa 'celebrar'" (Buonaventura, Wendy, "Serpent of the Nile").
A dança, em suas diversas formas, sempre foi terapêutica ou curativa. No entanto, somente em comunidades tribais e em áreas remotas ela ainda conserva sua antiga aplicação de magia imitativa, como um instrumento ritualístico usado para encorajar a fertilidade humana e o crescimento das colheitas. Ainda hoje podemos encontrar algumas culturas que utilizam a dança com estas finalidades. O certo é que ela sempre fez parte de rituais religiosos, e em algumas destas culturas ainda o é.
Do século IV a.C até a era cristã, muitas das mais populares deusas femininas no mundo helenístico e greco-romano vieram do Oriente, principalmente da Síria e da Turquia. Em Cyprus, local de nascimento de Afrodite, as mulheres executavam o que tem sido descrito como danças eróticas, de êxtase, com acompanhamento de tambores e cantos selvagens. O transe, ou elemento de êxtase, era crucial, pois liberava uma energia do corpo que ajudava a dançarina a entrar em outro estado de experiência e se unir à Deusa, cuja energia era então transferida para ela.

A Sexualidade Venerada - Quando falamos em dança do ventre, logo nos vem à mente a mulher sensual, sedutora, envolta em véus, cheia de força, mistério e beleza. Esses sentimentos são, em grande parte, evocados pela imagem da deusa do amor, outrora venerada pelas antigas civilizações que habitaram nosso mundo.
Inscrições antigas, encontradas em relíquias de templos escavados falam das cerimônias religiosas que celebravam a deusa do amor, da paixão e da fertilidade. A Deusa era conhecida por nomes diversos, em regiões e épocas diferentes, porém o culto a ela se dava de formas semelhantes. A beleza e a sexualidade da mulher eram objetos de adoração por serem consideradas manifestações sublimes da natureza.
Os templos eram habitados pelas sacerdotisas, mulheres que representavam a encarnação viva da Deusa. Segundo suas crenças, deusa manifestava-se através delas: "a mulher humana que trazia os atributos da deusa à vida dos seres humanos" (Qualls-Corbett, Nancy - A prostituta sagrada, 2005).

Nestes templos, a sexualidade da mulher era cultuada por ser considerada divina, e era um local onde se realizavam rituais que envolviam música, dança, celebração da sensualidade e da espiritualidade feminina. As sacerdotisas dançavam, não para receber admiração, nem tampouco para ganhar segurança, força ou posses - sua verdadeira identidade estava enraizada em sua própria condição de mulher, e as leis de sua natureza feminina estavam em harmonia com as da Deusa. Elas dançavam para celebrar a vida, a energia criativa oriunda do feminino sagrado.

Nesta época, as sociedades eram conhecidas como matriarcais - ou matrifocais, segundo algumas vertentes. O que não significava a supremacia do feminino com relação ao masculino, mas sim a harmonia entre ambos. Um bom exemplo disto é o chamado ritual do "hieros gamos" onde a sacerdotisa da Deusa unia-se sexualmente com o monarca local, simbolizando a união das duas forças divinas (feminino e masculino) com o intuito de assegurar a fertilidade e o bem-estar da terra e do povo. Era o chamado "matrimônio sagrado".

A Deusa Esquecida - Através dos tempos, o patriarcado foi prevalecendo sobre o matriarcado, evoluindo para o sistema patrilinear (a linhagem é dada pelo pai). Há muitos estudos sobre o porquê desta transformação. Uma delas seria a de que, primeiramente, o homem não sabia de sua participação na procriação (época em que a mulher era considerada uma criatura divina), e posteriormente passou a crer que era o único responsável por ela (acreditando que a mulher era apenas um receptáculo para seu fruto). Dessa forma, a mulher passou a ser vigiada e controlada, para que o progenitor pudesse ter certeza de que estaria legando sua herança à própria linhagem.
O homem passa a elaborar as regras de acordo com sua crenças e interesses. Aos poucos, com o domínio e subjugo da mulher, seus valores intrínsecos (e consequentemente os da Deusa) também acabaram sucumbindo. Um novo deus é criado, masculino e único, sem espaço para deusas e seus atributos. Os templos do amor deram lugar à casa do Senhor, e a mulher passou a ter importância secundária na vida religiosa. Ela então torna-se Eva, a encarnação da sedução sensual, que nada tem de divino, somente prazer carnal, "aquilo que leva o homem à ruína". Tendo deixado de ser vista como dádiva do divino, a sensualidade da mulher passou a ser rebaixada e explorada - e precisava ser contida, como um mal que se alastra e arruína. O homem então passou a destruir qualquer vestígio da Deusa.
Mudanças desta magnitude jamais acontecem sozinhas, e por consequência, outros aspectos da sociedade foram também transformados. A imagem arquetípica da Deusa foi substituída pela instituição da Igreja, que não reconhecia nem os atributos da Deusa nem a natureza sexual da mulher. A sensualidade passou a ser vista como "pecado", uma chave para o inferno, para a danação eterna. A salvação viria somente com a repressão da sensualidade feminina e de seus instintos sexuais, já que era considerada a causa de todo mal.

Um paralelo com a teoria junguiana - A teoria junguiana pressupõe dois tipos de inconsciente no homem: o pessoal e o coletivo. O inconsciente pessoal abriga as experiências individuais, que foram reprimidas ou esquecidas, ou por conteúdos que nem chegaram a fazer parte da consciência (experiências subliminares). Já o inconsciente coletivo pertenceria a uma camada mais profunda da psique, comum a toda humanidade, podendo ser comparada ao instinto nos animais. Para Jung, assim como o corpo tem sua configuração anatômica comum a toda a espécie humana (olhos, ouvidos, pulmões, etc), também a mente se apresenta da mesma forma.
Dentro do inconsciente coletivo existem estruturas psíquicas (os arquétipos) que seriam formas sem conteúdo próprio que servem para organizar ou canalizar o material psicológico, e estão presentes em todas as épocas e em todos os lugares. É um agrupamento definido de caracteres arcaicos, que, em forma e significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e nos folclores. Alguns exemplos de arquétipos: do herói, da mãe, de deus, do sábio, da deusa, etc. Estas estruturas são carregadas de forte carga emocional quando ativados, liberando uma quantidade tal de energia que é reconhecida pela consciência e sentida no corpo através de emoções. Ilustrando, quando o arquétipo da Deusa é ativado, ele nos preenche com sentimentos de amor, beleza, paixão sexual e renovação espiritual.
Jung coloca que, quando há perda de um arquétipo, sentimos uma desagradável sensação de "insatisfação" coletiva. Com o arquétipo da Deusa reprimido em nossa sociedade patriarcal, a criatividade e o desenvolvimento pessoal são asfixiados.

"Quando o feminino divino - a deusa - deixa de ser reverenciado, estruturas sociais e psíquicas tornam-se supermecanizadas, superpolitizadas e supermilitarizadas. O pensamento, o julgamento e a racionalidade tornam-se os fatores dominantes. Necessidades de relacionamento, afeto, carinho e respeito pela natureza permanecem negligenciadas. (...) Com o desprezo pela imagem arquetípica tão relacionada ao amor apaixonado (...) ficamos tristemente mutilados em nossa busca da integridade e da saúde" (Qualls-Corbett, Nancy, 2005).

Este feminino essencial, sufocado por séculos de domínio patriarcal, é resgatado através da dança do ventre. Possuindo origem ritualística (como a praticada nos templos sagrados), esta dança é caracterizada por seus movimentos de quadris sinuosos e vigorosos, que, segundo relatos históricos, mudaram pouco em sua essência em milhares de anos, embora tenham tornado-se mais refinados e sofreram influências de outras modalidades de dança ao longo do tempo.
Desta forma, através da dança do ventre, a bailarina liberta o arquétipo da Deusa, ativando o feminino sagrado. Com isso, ela consegue ver o mundo e ela mesma sob uma ótica diferente. Fluidos criativos são estimulados, e as fronteiras do racional são transpassadas, fazendo com que a vida adquira um novo significado, de plenitude.
É muito comum percebermos nas alunas a paixão pela dança, o envolvimento físico e psíquico que toma conta de seus corpos e mentes, transformando-a em algo muito maior do que uma prática de exercícios físicos, ou momento lúdico. Muitos estudos já foram realizados nesta área, e os resultados apresentados são sempre os mesmos: a mulher percebe-se mais segura de si, mais bela e mais sensual depois de algum tempo de prática. Seu relacionamento consigo torna-se mais intenso, e consequentemente com o parceiro, ou com o grupo no qual está inserida. Como trabalha estruturas inconscientes muito profundas (o inconsciente coletivo) através da ativação do arquétipo da Deusa, a praticante sente-se invadida por sentimentos de alegria, amor, auto-realização, sensualidade - todos eles atributos da Deusa, que por séculos foram reprimidos.
Jung denomina individuação o processo através do qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que implica uma ampliação da consciência. Esta seria a "meta" de desenvolvimento da psique. "Uso o termo 'individuação' no sentido do processo que gera um 'in-dividuum' psicológico, ou seja, uma unidade indivisível , um todo." (Jung, C. G. - Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, 2000). Eventuais resistências em permitir o desenrolar natural do processo de individuação são uma das causas do sofrimento e da doença psíquica, uma vez que o inconsciente tenta compensar a unilateralidade do indivíduo, gerando um desequilíbrio.
A função feminina, tanto em homens quanto em mulheres, completa a individuação e é fundamental para que ela ocorra, sendo vital para nosso desenvolvimento psíquico. De acordo com a psicologia junguiana, é o feminino que inicia a complementação da consciência pelo contato restabelecedor com o inconsciente. Com a dança do ventre, há o resgate desta função (perdida através de séculos de patriarcado) e a mulher sente-se caminhando em direção à totalidade. Daí as sensações descritas como sendo tão maravilhosas pelas praticantes da dança.
"(...) Esse lado ativo do feminino é semelhante àquela loucura divina da alma descrita em Fedro, de Platão, que evoca forças primitivas que nos levam além das limitações e convenções das normas sociais e da vida razoável. Neste sentido, Eros produz êxtase, a liberação das convenções de grupo... o êxtase pode variar, indo seu espectro desde um ser sendo momentaneamente levado para fora de si, até o profundo alargamento da personalidade" (Jung, C.G., The Colletcte Works) - ou seja, a INDIVIDUAÇÃO!!


Andrea Beck Castro
Psicóloga, Bailarina e Professora de Dança do Ventre - Escola Templo do Oriente (www.templodooriente.com.br - bailarina Shanti Nur)
andrea.bcastro@gmail.com
PORTO ALEGRE/RS

Fotos: Edição de arte a partir de fotos de Nancy Ribeiro e Adobe Images

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