Dançar é humano

Por que continuamos a dançar?
O mundo moderno, tecnológico, individualista, parece ter abandonado o pensamento mítico mas continuamos com o impulso atávico para a dança.
A dançarina de tango, Ana Karina Paz, faz pesquisas antropológicas sobre danças e redigiu especialmente para o público do Absoluta um interessante estudo sobre as percepções humanas a respeito da corporalidade e de uma espécie de mundo sagrado que é criado na dança. O dançarino é retirado de si mesmo, de modo a tecer um círculo mágico e se tornar uno com aquele mundo. Ana nos mostra também que se, desde nossa ancestralidade, a potência da natureza passou a ser simbolizada através das sensações do próprio corpo, a partir do qual forças mágicas puderam ser vivenciadas na corporalidade do bailarino, por outro lado elas também se tornaram visíveis para os demais. A dança, assim, além de experiência individual, se torna espetáculo. Veja aqui, portanto, por que dançar é tão humano...


A dança faz parte da vida humana desde a ancestralidade como a forma mais desenvolvida de expressão do homem primitivo e, conforme a bailarina e pesquisadora Judith Hanna [1], possivelmente tenha sido significativa para o desenvolvimento biológico e evolução da espécie humana.
Tal proposição passa a ser compreensível, se levada outra em consideração, segundo a qual o homem é um animal preso a teias de significado que ele mesmo teceu [2]. Neste sentido, é preciso considerar, em relação à evolução de espécie humana, o desenvolvimento da cultura concomitante ao desenvolvimento biológico, bem como a descoberta de que a maior parte das mudanças biológicas que ocorreram no "Homo-Sapiens" se deram no sistema nervoso central e no cérebro, fazendo com que o homem deixasse de receber geneticamente as informações relativas ao modo de agir diante das situações e passasse a depender, cada vez mais, da cultura para orientar seus atos.
Na medida em que o homem se desenvolvia biologicamente, desenvolvia-se também a cultura, que se caracteriza não como uma conseqüência do desenvolvimento humano, e sim como possibilidade de evolução. O homem fica, portanto, amarrado ao sistema sígnico em que se constitui a cultura, ela passa a determinar as noções de certo e errado, a organização social, as relações familiares, o sentimento de amor, ódio, amizade, dever, justiça, honra, enfim, o "estar no mundo" de uma sociedade e seus indivíduos.
A noção de sistema sígnico, por sua vez, pressupõe a consideração da capacidade humana de simbolizar. Observando que a compreensão humana das relações dinâmicas começa com a experiência de esforços e obstáculos, conflitos, vitórias ou derrotas vivenciadas na corporalidade, pode-se apontar o corpo como o símbolo primevo, fazendo com que o homem concebesse a existência de poderes na natureza, que agissem como impulsos em analogia com o vigor do corpo.
Assim, a humanidade passou a ver o mundo como um reino de forças vivas individuais, com desejos propósitos e, por vezes, em conflito com outros poderes. O reconhecimento de tais poderes ocorria através do reconhecimento de vontade e desejo pessoal no próprio corpo e sua representação se dava através de uma atividade corporal que abstraísse a sensação de poder das atividades práticas: a dança. Nela, todo movimento é um gesto, abstração básica através da qual é efetuada e organizada.

Dançar é humano, afirma Hanna, e, através da dança, a humanidade se exprime quase universalmente, interagindo com aspectos da vida como comunicação e aprendizado, sistemas de crença, relações sociais e dinâmicas políticas, amor e guerra, urbanização e mudança. Para nossos ancestrais, ela era capaz de criar uma imagem de poderes inominados e até incorpóreos, habitantes de um mundo completo e autônomo, um reino de forças místicas, que, mais do que símbolos, constituíam-se como realidades, poderes a serem invocados, adjurados, desafiados ou aplacados.

O que justifica a eterna popularidade da dança? - A dança possibilitou a visualização de um mundo para além do aqui e agora descontínuo do ser individualizado, que apontava para a unidade cósmica e torna o homem parte da mesma. Todas as atividades vitais e cruciais - nascimento, puberdade, casamento, morte, plantio, colheita, caça, batalha, vitória, estações do ano - passaram a ser consagradas pela dança, através da criação de um reino de Poder, um mundo de forças vitais, incorporadas ou desencorporadas, o reino do sagrado, em que símbolo e significação são apreendidos como uma só realidade. "O símbolo do mundo", diz Susane Langer [3], "a esfera das forças baléticas, é o mundo, e a dança é a participação do espírito humano nele".
A imagem de uma "esfera de poder" talvez explique porque a roda provavelmente seja primeira forma de dança, passando também a constituir sua primeira função sagrada: dividir a esfera da existência profana e a da santidade. O círculo torna-se imagem espelhada do universo, nele as contradições são suprimidas e toda potência está contida, fim e início coincidem nele. Originadas na figura do círculo, surgem novas formas geométricas sagradas, que refletem a unidade entre natureza e cosmos, as quais, relacionadas entre si, oferecem ao dançarino matéria para construção de uma ordem sagrada, correspondente à ordem do cosmos [4].
Abandonar a esfera profana, excluir suas restrições e propriedades , adentrando a esfera mágica e poderosa do sagrado, conduz ao êxtase, o sentimento de pertencer ao reino de poder. Através de uma infinidade de técnicas, o dançarino é "tirado de si", de modo a tecer um círculo mágico e se tornar uno com aquele mundo.
No entanto, se a potência da natureza passou a ser reconhecida e simbolizada através das sensações do próprio corpo, a partir do qual forças mágicas puderam ser vivenciadas na corporalidade do bailarino, elas também tornaram-se visíveis para os demais. A dança, assim, além de experiência individual, torna-se objeto de observação, constitui-se como espetáculo. A presença da audiência lhe confere status artístico, provocando a cisão entre a dança como atividade e como espetáculo. Ambas vertentes desenvolveram-se em paralelo, sobrevivendo até a atualidade como dança artística e dança social.
Por que, num mundo dominado em que o pensamento mítico foi aparentemente abandonado, suplantado pelo filosófico-científico, continuamos a dançar? O que justifica a eterna popularidade da dança? Talvez o fato de que a existência dos antigos poderes persiste em nosso imaginário, e porque, mais do que nunca, tenhamos necessidade de recuperar o reino do sagrado dentro de nós e sentirmos que somos unos com o mundo a nossa volta.


[1] HANNA, 1987, p. 3.
[2] GEERTZ, 1989. p. 56.
[3] LANGER, 1980, p. 200.
[4] WOSIEN, 2002, p. 8.


REFERÊNCIAS
GEERTZ. C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
HANNA. J. L. To dance is Human. Chicago: University of Chicago, 1987.
LANGER. S. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980.
WOSIEN. M. G. Dança Sagrada. Deuses, mitos e ciclos. São Paulo: TRIOM, 2002.


[1] DINZEL, 1994, p. 9.


Ana Karina Paz é mestre em Letras, bailarina clássica, professora de dança de salão e enfatiza seus estudos no tango argentino.
Em parceria com Alexandre Becker, compõe a dupla "Simplemente Tango" .
http://www.pampayfrontera.com/
contato@pampayfrontera.com
PORTO ALEGRE/RS

Ilustrações: Edição de arte a partir de imagens de Wikipedia

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