Dança, sexualidade, maternidade e o feminino ancestral

Na sua origem mais primitiva, a dança do ventre era vivenciada como ato sagrado nos templos e servia também como ferramenta de suporte na hora do parto. Ou seja, desde que o mundo é mundo, as mulheres já tinham a consciência de unir esforços a favor umas das outras, coisa que hoje se tenta resgatar com Círculos Femininos. Eminentemente feminina, a dança do ventre em si é um resgate mais visceral da ancestralidade e da consciência do Sagrado.
A propósito, Carla Lampert, focalizadora do Feminino Essencial, bailarina e professora de dança do ventre, revela como sua gravidez foi bem trabalhada graças às suas vivências... dançando!


Comecei a aprender dança do ventre em 1996. No meu caso isso significa, entre tantas outras coisas, que mesmo sem me dar conta, por 9 anos preparei meu corpo para uma gravidez e parto natural bem sucedidos. Quando minha filha nasceu em 2005, eu havia dado aulas de dança do ventre durante toda a gravidez até as 38 semanas. Com 40 semanas ela veio ao mundo, serena e tranqüila, de olhinhos abertos e com um ar de "admirável mundo novo".
Eu estava terminando a faculdade. Meu corpo resistia viajar de ônibus e trem diariamente para ir à UFRGS, e meu fôlego me permitia subir e descer quatro andares de escada, semana após semana, e ainda dar aulas de dança com muito prazer, além de uma mente em equilíbrio que me permitiu concluir a faculdade apresentando um trabalho de conclusão conceito "A", ao mesmo tempo em que fazia pré-natal, enxoval, chá de fralda e preparava o quartinho para a chegada da pequena Carol.
Tenho certeza que devo muito disto à prática da minha dança e da minha vivência com o Sagrado Feminino que me fortaleceram e me preparam para a maternidade, mesmo sabendo que esta vivência de mãe de primeira viagem seria uma caixinha de surpresas. Mas, ao contrário da caixa de Pandora, desta caixinha saíram e saem até hoje surpresas muito agradáveis, presentes e ensinamentos valiosos. Nunca tive dúvidas quanto ao parto normal e não senti medo pois sabia que meu corpo e mente estavam preparados para isso, além de uma clara sensação de que a experiência do parto em si agregaria muito valor e sabedoria à minha existência, uma certeza ancestral ligada a tudo que acredito e pratico em relação ao feminino sagrado.
Quem se der ao luxo de pesquisar, vai descobrir que na sua origem mais primitiva, além de ser uma antiga dança sagrada nos templos, a dança do ventre era uma dança feminina destinada a auxiliar as mulheres na hora do parto. Ou seja, desde que o mundo é mundo, as mulheres já tinham a consciência de unir esforços em prol umas das outras, coisa que hoje tentamos resgatar com Círculos Femininos.
Já, com a dança do ventre em si, este resgate é mais visceral, porém um encontro real da mulher com sua "deusa interior" pode acontecer somente através de um trabalho bem orientado ligado a esta consciência sagrada da dança.
Naquele tempo, porém, a realidade era outra e a necessidade de auxílio feminino era mais gritante em momentos especiais - rituais de passagem como a menarca, o parto e a menopausa -, situações que marcavam pragmaticamente as principais mudanças na vida feminina: de criança para mulher, de mulher para mãe, e de mãe para anciã, a sábia.

A dança do ventre que conhecemos hoje tem sua origem diretamente ligada à sexualidade e à maternidade. Com o fim da era matriarcal e o advento do monoteísmo patriarcal com suas restrições religiosas, esta dança deixou de ser sagrada e foi transformada em entretenimento ou, no máximo, como um ritual terapêutico. Movimentos como tremidos, ondulações e de chão, foram inspirados nos movimentos de parto e nascimento, que integravam uma cerimônia religiosa de milhares de anos atrás.
Em um texto no site da bailarina Morocco, é relatado que, em áreas remotas do Oriente onde a contaminação pelas idéias ocidentais ainda não havia chegado, todas as mulheres se reuniam em torno da parturiente realizando movimentos abdominais, com o propósito de hipnotizá-la e estimulá-la a fazer o mesmo, para facilitar o nascimento e reduzir a dor das contrações, e lembrar umas às outras de que compartilham o mesmo destino e experiências como mulheres. Os músculos abdominais daquelas mulheres eram fortalecidos e bem mais preparados para o parto do que o corpo da mulher atual porque desde a infância já treinavam para o parto através da prática desta dança. Morocco relata um caso real onde:
"Uma tenda foi construída no final de um vilarejo, para onde a parturiente se dirigiria para o parto. Uma pequena cova foi feita no chão, bem no meio da tenda para a chegada do bebê. A tenda era abastecida por alimentos diversos, frutas e chás, e um divã para a futura mãe. Não era permitida a permanência de homens na tenda das mulheres. As mulheres passaram o dia cantando, dançando e tocando instrumentos, tomando chá e comendo, enquanto o trabalho de parto não se iniciava. Inclusive, a parturiente foi capaz de dançar junto com as outras mulheres da tribo. Quando o trabalho de parto começou, iniciou-se uma espécie de ritual de apoio e confraternização, com a parturiente no centro, agachada sobre a cova. As companheiras formavam uma série de círculos em volta dela, e começaram a cantar lentamente, movimentando-se em sentido horário, e realizando lentas ondulações abdominais - mais fortes do que os que conhecemos por tremidos na dança do ventre, como uma forma de apoio psicológico à companheira que estava prestes a dar à luz. Em alguns momentos, a parturiente se levantava e, no mesmo lugar, realizava os mesmos movimentos do grupo, também em razão das contrações, para depois se agachar novamente. Ela não parecia agitada ou sofrer de alguma dor, o único sinal de esforço percebido era a transpiração abundante. Assim que os bebês nasceram (gêmeos), as mulheres deram o grito beduíno, levando a notícia ao pai da criança. Este dirigiu-se à tenda e parou a uma distância exata do local, para onde os bebês foram levados a fim de que ele os pudesse ver, depois retornaram para serem amamentados. As mulheres retomaram o canto e continuaram dançando até o pôr do sol..."
Em 1923, no texto "A Dançarina de Shamahka", a bailarina armênia Armen Ohanian faz um relato de suas experiências de vida com a dança. Um fenômeno para sua época, Armen era proveniente de uma família muito rica e possuía muita afinidade com o meio intelectual e artístico, sendo, acima de tudo, uma grande pensadora da Dança Oriental. Segundo Armen, o Ocidente jamais compreendeu o verdadeiro significado sagrado da Dança Oriental. Ela relata com muita propriedade a seguinte cena no Egito:
"Certa noite, no Cairo, eu vi, com os olhos incrédulos, uma de nossas mais sagradas danças degradada junto a uma bestialidade horrível e revoltante. Ela é o poema de mistério e dor da maternidade, que todo homem asiático assiste com reverência e humildade, nos longínquos cantos da Ásia, onde o sopro destrutivo do Ocidente ainda não penetrou. Nesta velha Ásia, que tem mantido a dança em sua pureza primitiva, ela representa a maternidade, o mistério da concepção da vida, o sofrimento e a alegria com que uma nova alma é trazida ao mundo. Poderia qualquer homem, nascido de uma mulher, contemplar este tema tão sagrado, expresso numa arte tão pura e tão ritualística como a nossa Dança Oriental, sem menos do que uma profunda reverência? Tanto é a veneração asiática pela maternidade, que há países e tribos cujo mais solene juramento é feito sobre o ventre, porque é desta taça sagrada que a humanidade tem se provido. Mas o espírito do Ocidente tinha tocado esta dança sagrada e ela se transformou na horrível Dança do Ventre. Para mim, uma nauseante revelação da insuspeita oculta da bestialidade humana, para outros ela foi 'diversão'. Ouvi os risos abafados dos europeus. Vi sorrisos lascivos até nos lábios dos asiáticos, e fugi".

Deste desabafo da Armen pra cá, passaram-se mais de 85 anos, ela viveu o ápice da degradação do sagrado feminino, da dança sagrada e da cultura matriarcal. Hoje, existem mulheres contemporâneas, como eu, que estão buscando juntas resgatar e revitalizar estes alicerces ancestrais presentes em nosso inconsciente, que são vitais para a saúde psíquica da mulher. No entanto, ainda existe um mar de mulheres ceifadas desta ligação importante com o feminino ancestral, o que acaba se refletindo em problemas reais da mulher moderna em relação ao que lhe é natural como a menstruação, a gravidez, o parto, os filhos. Não é saudável uma mulher ter nojo e pavor de seu sangue menstrual, por exemplo, mas isso é o reflexo de problemas muito mais intrínsecos da mulher com a sua história e o rompimento da sua integridade feminina. Refazer esta ligação dá trabalho e é necessário muitas vezes coragem, mas o resultado é uma mulher mais forte, mais bonita e mais absoluta.

Carla Lampert
Focalizadora do Magdala Círculo Feminino Essencial, Bailarina e Professora de Dança do Ventre com ênfase no Feminino Sagrado, e Relações Públicas
www.femininoessencial.blogspot.com
magdala2009@gmail.com
orkut: http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=6860311521198689138
PORTO ALEGRE/RS

Fotos: Arquivo pessoal

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