Por quê dançar?

O corpo é nossa primeira casa, é a interface mais íntima entre nós e o mundo.
A partir disto, criada nos anos 50 sob forte influência dos estudos junguianos, existe uma técnica de dança que centra o foco total no movimento dos corpos como ferramenta de conhecimento e descoberta. Cunhada como "Movimento Autêntico", vai além da técnica e da arte, e permite contato com aquilo que sempre esteve, e sempre estará, para além das palavras.
Através de uma dupla - o que se move e o que testemunha -, a união de corpo, movimento e significado é vivenciada por ambos, cada um dentro de sua própria subjetividade.
Formada em Dança Contemporânea, a pesquisadora carioca Mariana Aurélio traz os detalhes do MA, uma dança que propõe diluir espaços ilusórios entre o outro e o eu, o ver e ser visto.


Ao invés de nos perguntarmos o que é a dança, uma pergunta alternativa e possivelmente mais proveitosa seria: para o que ela serve? Embutidos nesta indagação estão o questionamento sobre a real motivação de se dançar e o benefício conseqüente da prática. A reflexão sobre as implicações políticas relacionadas à serventia e aplicabilidade da arte é de extrema importância. No entanto, nos cabe aqui sugerir uma outra linha de raciocínio: se bailarinos, leigos, idosos, crianças e portadores de deficiências dividirem em comum a mesma motivação pelo dançar, serão eles capazes de criar uma dança equânime, de mesmo valor expressivo? E, por fim, traria essa dança o mesmo benefício para todos?
Motivação não requer técnica, preparação, nem treinamento. Motivação diz respeito ao que nos move. O impulso que gera o movimento é inato a todos. Ele está presente mesmo antes do nosso primeiro impulso em direção à nutrição materna, ao nosso primeiro objeto de desejo. Nadando em espaço constrito, já nos movemos em meio à placenta. Nesse momento já relacionamos-nos com o que é "o mundo" e nossos desejos. Tal relação - quer seja com o universo intra-uterino, com o seio da mãe, ou com todos os demais objetos de desejo que encontraremos ao longo de nossas vidas - se dá através do movimento e é experimentada e expressada por um corpo que pulsa. Toda e qualquer linguagem é uma tentativa de otimizar essa relação com o objeto de desejo, através do aprimoramento da comunicação - isto é, a comunicação se da através da linguagem que, por sua vez, é a expressão da pulsação.
Dito isso, a dança pode ser uma linguagem desenvolvida pelo movimento corpóreo, no qual expressamos, ou melhor, vivenciamos o nosso impulso. Também podemos entender a dança como técnica; como o aprimoramento da linguagem do corpo, através da qual alguém diz alguma coisa (e geralmente a outro alguém). Tal técnica, que está inserida dentro de um campo de linguagem artística em desenvolvimento há bem mais de quatro séculos, é a prática de bailarinos.

No entanto, o que compreendemos como a prática do mover não se restringe ao universo da linguagem artística e nem é praticada exclusivamente por bailarinos/artistas (entendo aqui que um bailarino é um artista). Podemos considerar o mover como o gesto, ou o conjunto de gestos, sem conotação ou intenção artística. O mover, ou melhor, a prática consciente do movimento corpóreo é anterior à arte, estando diretamente ligada àquilo que nos é mais íntimo. O mover frequentemente expressa aquilo que não cabe em palavras. O gesto é anterior à palavra.

Corpo, movimento e significado - Dentro deste contexto podemos falar do Movimento Autêntico, prática desenvolvida em meados da década de 1950 por Mary Whitehouse, continuada por Janet Adler na California e trazida ao Brasil por Soraya Jorge (RJ). Fortemente influenciada pelos estudos junguianos, o MA compreende o gesto como dotado de significado (proveniente tanto do movedor quanto daquele que o testemunha). Assim, a prática do MA é sempre composta por pelo menos duas pessoas: um movedor (que se move de olhos fechados) e a testemunha (que vê o movedor e se mantém estática). A união de corpo, movimento e significado é vivenciada por ambos, cada um dentro de sua própria subjetividade.
O movedor, ao fechar os olhos, move seu corpo de acordo com seus impulsos internos. Sua prática é a de afinar a escuta, para que a percepção de tais impulsos fique cada vez mais clara. Isso possibilita uma relação interna com aquilo que nos move. Com o amadurecimento da prática, brota do próprio movedor aquilo que chamamos de testemunha interna, e surge a experiência de ser movido por si mesmo. Este estado se dá quando extinguimos qualquer gesto intencional, dotado de um alguém que faz alguma coisa. O movimento que é autêntico se dá quando o gesto se torna imprescindível e em nível não-conceitual. O movedor simplesmente se deixa ser; sendo movido pela pulsação daquele momento presente. Curiosamente, não é mais o movedor que move.
De olhos abertos e se mantendo estática, a testemunha acompanha o movedor. Sua prática é a de testemunhar sem se apegar a julgamentos ou significações - e estando sempre atenta e consciente de quando estes surgem. Trata-se de um ato de generosidade: a testemunha oferece um campo seguro pra o movedor enquanto observa em seu próprio corpo o surgimento dos diversos impulsos para se mover. Assim, como o movedor, a testemunha se relaciona com a sua pulsação interna, mas a sua prática é essencialmente a de sustentação.
Não há uma quantidade limite de pessoas para a prática conjunta e as limitações a serem ultrapassadas são as couraças individuais de cada um. Uma sessão de MA pode incluir o compartilhar verbal das experiências de todos após o término do movimento. A testemunha oferece seu testemunho, enquanto o movedor fala de sua própria testemunha interna. Ambos falam de si e do que sentiram/pensaram durante a prática, utilizando o método de imaginação ativa de Jung. A consciência da subjetividade inerente à criação de significados é exercitada durante o uso da palavra.
O MA é um meio hábil, uma ferramenta, para nos apropriarmos de nossos corpos. Para que habitemos nossa primeira casa de forma consciente, e consigamos levá-la ao encontro do outro. Descobriremos por fim os espaços ilusórios entre o outro e o eu, o ver e ser visto. Neste espaço é possível dançar além da técnica e da arte. Através desta dança, é possível entrar em contato com aquilo que sempre esteve, e sempre estará, para além das palavras.

Mariana Aurélio
Formada em Dança Contemporânea pela Escola Angel Vianna, com mestrado em Design e Pesquisa Visual pela London College of Communications. Pesquisadora de Contato Improviso e Movimento Autêntico desde 2002. Estudou na Tatiana Lescova (RJ), Washington School of Ballet (E.U.A.), Eduardo Ramirez Escuela de Ballet (Montevideo), Miami International School of Ballet (E.U.A.) e Intrépida Trupe (RJ). Pesquisa pontes entre as práticas de meditação tibetana e o movimento corpóreo. Ministra aulas em Porto Alegre.
http://www.horta.art.br/
http://www.movimentoautentico.com.br/
http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=204344383130279979
mariana.aurelio@gmail.com
RIO DE JANEIRO/RJ

Fotos: movimentoautentico.com

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